Vão as Copas, ficam as camisas

E as lembranças.

Arthur Lemos Coutinho
8 min readDec 24, 2022
Foto: arquivo pessoal.

Tem um ditado que diz que o melhor da festa é esperar pela festa. Se isso é verdade ou não cada pessoa pode dizer. Mas já se passaram 20 anos e brasileiros continuam esperando a oportunidade de comemorar novamente um título de Copa do Mundo.

No Brasil de 2022, o período de campanhas eleitorais praticamente contaminou o clima de Copa que se costumava ver de quatro em quatro anos.

Em ano de Copa sempre foi ano de eleição. Mas a Copa acontecia em junho e as eleições em outubro, novembro. Ou seja, dava pra unir o país pra torcer pela seleção no meio do ano e depois dava tempo de debater sobre política no resto de ano que sobrava.

Em 2022 foi ao contrário: primeiro veio a eleição, depois a Copa. Gostamos do resultado eleitoral? Sim. Trocaríamos esse resultado pra ter o hexa? Definitivamente, não. Mas… o título da seleção brasileira também tinha seu valor. Durantes os jogos, muitos brasileiros conseguiram entrar no clima de Copa apesar de tudo.

Tiveram reuniões nas praias, praças e outros pontos das cidades de todo Brasil? Tiveram. Antes, durante e depois dos jogos Galvão Bueno chamava o Olodum, na Bahia, os bonecos de Olinda, em Pernambuco, a massa de cariocas no Rio de Janeiro e um monte de outras festas espalhadas pelo país afora? Chamava. Ruas foram pintadas, bandeirinhas foram penduradas, lojas foram decoradas e figurinhas da Copa foram trocadas? Talvez em menor quantidade em comparação com Copa anteriores, mas, sim, foram. Mesmo com tudo isso, o hexa não veio.

De qualquer forma, também não dava pra garantir que ele não viria. Tite, o treinador da seleção, chegava pra competição com experiência e desempenho favorável no comando da seleção, jogadores como Marquinhos, Casemiro, Vinícius Jr. e Neymar chegavam no auge da forma técnica e física. Então quem não estava confiante estava errado.

Alguns dias antes da Copa começar eu me dei conta que poderia acompanhar o título do Brasil sem estar vestido com uma camisa da seleção. Imaginei cinco, dez anos depois, vendo as fotos do período em que assistimos a Copa do Catar pela TV, comigo ali, vestindo uma camiseta cinza ou preta, sei lá. Recobrei a lucidez e decidi que não poderia deixar esta imaginação do futuro se concretizar. Tratei de pesquisar camisas da seleção brasileira pra comprar.

Não me surpreendi ao ver que a camisa oficial confeccionada pela Nike estava custando R$699. Obviamente, também não me interessei.

Passei a procurar as réplicas não originais. Faltavam alguns dias pra cerimônia de abertura, o Brasil só jogaria cinco dias depois, pensei na quantidade de pessoas comprando essas camisas pela internet, o prazo de entrega pelo frete, calculei mais ou menos se já teria chegado até o dia da final e conclui que não seria bom arriscar.

Então decidi procurar em lojas do comércio local. A primeira loja que fui não tinha a réplica falsificada da original que eu procurava. A segunda loja tinha, mas custava R$150. Achei caro e não tinha meu tamanho. Na terceira loja a surpresa: camisas no meu tamanho e custando R$80 cada. A experiência de ir até o provador experimentá-las foi magnífica. A azul, estampando a pele da onça nas mangas, além de detalhes verdes e amarelos, mais parecia um objeto sagrado que eu não sabia que precisava. A amarelinha — com textura que também imitava a pele da onça, mas dessa vez por toda a camisa — me fez imaginar que, se fosse preciso, eu entraria em campo no Catar pra trazer o hexa. Comprei.

Com toda certeza me peguei pensando se teria coragem de usar a amarelinha fora do contexto da Copa. Correr o risco de ser confundido com um eleitor bolsonarista não seria agradável. O sonho do hexa me cegou pra isso.

Até tentei calcular o que seria pior: ir na academia com a camisa amarela da seleção, mas com uma plaquinha dizendo “não sou bolsominion" — ou algo do tipo — e correr o risco de criar encrenca com os bolsonaristas; ou, ir na academia com a camisa amarela da seleção, sem a plaquinha, e ser olhado torto por quem é de esquerda. Ainda não conclui o que seria pior.

De toda forma, não me empolguei sozinho nesse sonho do hexa-campeonato. Também fiz Ingrid e meu irmão Lucas embarcarem nessa de comprarem a camisa comigo. Já que não íamos gastar dinheiro colecionando o álbum de figurinhas dessa vez, podíamos ser irresponsáveis de outra forma.

Com as camisas adquiridas, devidamente experimentadas e aprovadas, a Copa começou no domingo. A Inglaterra goleou na segunda, Argentina passou vergonha e perdeu pra Arábia Saudita na terça, a França tomou um susto mas virou no mesmo dia e, depois de uma eternidade, chegou o dia da estreia do Brasil na quinta.

Aqui em casa a gente estabeleceu um ritual que deu sorte e aumentou nossa crença de que o título viria. No primeiro jogo, contra a Sérvia, se reuniram Lucas, Fernanda, Flavio, Manuela, Ingrid e eu. Os dois gols de Richarlison trouxeram vibrações, abraços e felicidade. Combinamos de manter a configuração do grupo.

No segundo jogo, contra a Suíça, Ingrid teve que assistir ao jogo no trabalho por ser num horário comercial. Em casa, acompanhamos a partida nos mesmos lugares da sala e posições no sofá. A ausência de Ingrid comprometeu o ritual e, por consequência, o desempenho da seleção. Por isso a vitória foi magra, 1x0. Gol de Casemiro.

A partida contra Camarões, na terceira rodada, foi marcada pela escolha de Tite em utilizar o time reserva. Mas o que foi decisivo mesmo pra o resultado final foi o acréscimo de Aline, minha mãe e minha avó no cenário da sala à frente da TV aqui em casa. O placar a gente já sabe: derrota de 1x0 pra seleção camaronesa. Aquela configuração de integrantes que tava dando certo foi sendo modificada gradualmente e as consequências a gente viu.

Durante o final de semana debatemos pra onde levaríamos as três pés frios quando o Brasil fosse jogar na segunda-feira. A partir de então qualquer derrota seria fatal. Não chegamos a nenhuma conclusão e elas permaneceram com a gente pro jogo das oitavas de final.

A nota interessante disso é que nenhuma das três estava na sala quando a partida contra a Coreia do Sul começou e o Brasil já fez o primeiro gol. O segundo gol elas viram, mas não o momento em que o juiz marcou pênalti. No final, o Brasil ganhou de 4x1 e garantiu classificação.

Na partida de quartas de final, diante da Croácia, deu tudo errado. Ingrid viu o jogo no trabalho, nem o juiz nem o VAR assinalaram pênalti pro Brasil nos primeiros minutos da segunda etapa, a seleção croata cozinhou a partida, ficou o tempo todo sem ameaçar a defesa brasileira, o jogo ficou empatado e fomos pra prorrogação.

Todos sentiam a tensão. O coração batia mais forte e o medo de ser eliminado pela quinta vez seguida por uma seleção europeia se espalhava pela mente de todos nós.

No fim do primeiro tempo da prorrogação, uma troca de passes entre Neymar, Rodrygo e Paquetá, na intermediária da defesa croata, balançou os rumos dessa história. Neymar entrou na área, fintou o goleiro Livakovic e arrematou a bola pro fundo gol. Quase que de modo selvagem, o grito de gol saiu da garganta. A tensão, o nervosismo e o medo se transformaram em gritaria, abraços e entusiasmo.

O primeiro tempo da programação acabou, o segundo tempo começou, mas antes que ele terminasse a Croácia empatou a partida. Perdi as contas de quantas vezes já vi e revi esse fatídico lance.

Afundado no sofá, naquele lugar que imaginava trazer sorte pra seleção, vi a comemoração dos jogadores croatas. Naquele momento eu não dera muita atenção, mas ouvi minha sobrinha Manuela, de três anos, repetir a palavra entoada por Galvão Bueno pra descrever o que tinha acabado de acontecer. Ela repetiu: goool. Enquanto deitadinha num colchão da sala, de costas pra TV e assistindo algum desenho no celular. Passada a tensão do jogo, esse episódio ficou registrado como um gesto engraçado em meio a tristeza. Ela não sabia o que aquele gol significava, nem tinha tempo de vida suficiente pra saber, mas foi a contribuição dela pro momento.

Ao fim da prorrogação, com o jogo empatado, seguiram-se as cobranças de pênaltis. Já de início Rodrygo desperdiçou sua cobrança. Na sequência, Casemiro e Pedro converteram suas penalidades, mas o goleiro Allison não defendeu nenhum pênalti croata. O sonho do hexa acabou com a cobrança de Marquinhos batendo no pé da trave.

Após a partida, muitos comentários passaram a ser direcionados em dois caminhos: a ineficiência de Alisson em pegar pênaltis e ao fato de Neymar, o melhor batedor, não ter batido primeiro. Talvez o foco nesses dois pontos tenha sido o meio de não crucificar moralmente o jovem e promissor Rodrygo.

Vídeos publicados no YouTube por Diogo Defante, Cartolouco e Desimpedidos dão uma boa medida do sentimento vivido em solo catari. Ninguém estava preparado pra ser eliminado pela Croácia. Quem ficou no Brasil e acompanhou pela TV teve a mesma frustração.

No mesmo dia, mais tarde, ainda ocorreria Argentina x Holanda. No dia seguinte, Portugal x Marrocos e França x Inglaterra. Todos válidos pelas quartas de final. A verdade é que após a eliminação brasileira o tesão com os jogos da Copa diminui totalmente. Chegamos a sentir o gostinho da eliminação Argentina nos pênaltis contra os holandeses, mas ela não veio. Portugal foi eliminada por Marrocos e a favorita França venceu a Inglaterra.

Nas semis, a Argentina venceu com certa facilidade o time croata, fazendo aumentar o sentimento de inveja e rivalidade, e a França venceu com dificuldades a histórica seleção marroquina — a primeira seleção africana e árabe a alcançar a fase de semifinal de uma Copa do Mundo.

Na grande final, Argentina x França duelaram pelo título e pelo direito de se tornarem tricampeãs. Mas após o apito final, só uma alcançaria tal feito. Para isso, a Argentina, campeã em 1978 e 1986, contava com o talento de Lionel Messi. Já a França, campeã em 1998 e 2018, contava com a força e agilidade de Kylian Mbappé. Os dois chegaram até a decisão sendos os artilheiros da competição, com 5 gols cada, e disputando o prêmio de melhor jogador da Copa.

Os lances de melhores momentos da partida estão disponíveis pra quem quiser ver. O roteiro da final, que contou com vantagens, empates, prorrogação e pênaltis foi emocionante. A partida precisou ser decidida nas penalidades — após um 3x3 nos 120 minutos, mais acréscimos — pra conhecermos o campeão. Mbappé anotou os 3 gols do lado francês, enquanto Di Maria e Messi (2x) marcaram pelo lado argentino. Nos pênaltis, o goleiro Emi Martinez foi o protagonista e garantiu o título mundial da seleção argentina. A festa dos hermanos foi bonita, eufórica e comovente. De casa, assistimos nos imaginando no lugar deles.

Nos dias seguintes ao encerramento da Copa de 2022, os debates nas mesas redondas do jornalismo esportivo e nas redes sociais passou a ser contaminado pelo desejo de definir se Messi já poderia ser considerado o maior e melhor jogador de futebol da história, pelo desejo de definir se a final do mundial no Catar poderia ser considerada a melhor final de Copa do Mundo de todos os tempos, e por futilidades semelhantes a estas.

Em 2022, acreditamos que o hexa viria no Catar. Também se acreditou em 2018, quando a Copa foi na Rússia, acreditamos em 2014, quando a Copa foi no Brasil; em 2010, quando foi na África do Sul, e na Alemanha em 2006. Agora a espera durará até 2026, quando a Copa do Mundo da Fifa acontecerá nos Estados Unidos, México e Canadá.

Até lá um novo ciclo de jogadores será convocado, muitas formações e variações táticas poderão ser testadas e o sonho do hexa será renovado. Como brasileiro, estarei pronto para vestir vermelho no período eleitoral e amarelo no período de Copa do Mundo. E com orgulho.

--

--

Arthur Lemos Coutinho

Acredita que Futebol, Política e Religião se discute. Tenta fazer isso de forma respeitosa. Doutorando-se | E-mail: arthurlemoscoutinho@gmail.com